Crónica Cubana

Crónica Cubana

COMPARTILHE

La Habana, final de tarde. Enquanto o Sol se põe lentamente no horizonte, pintando de encarnado céu e mar, o Malecón vai ganhando vida. O cartão postal de Cuba é efectivamente um regresso ao passado. Packards, Oldsmobilles, Cadillacs incrivelmente mantidos enchem a avenida, transportando-nos para um mundo que apenas conhecemos dos filmes de Hollywood. Nos finais de tarde, La Habana transfigura-se, como que exorcizando a falta de quase tudo o que é essencial para uma vida digna, aos ritmos da salsa e de doses abundantes de rum. Até ao dia seguinte, ninguém pensará mais na carne que não existe, no feijão, no arroz, no papel higiênico, na pasta de dentes, em tudo o que insiste em não aparecer nas prateleiras das mercearias locais. Agora é tempo de festa e festa em Cuba é dança a transpirar sensualidade.
Roberto, quase 90 anos de caribe, pele tisnada pelo sol intenso e pelos muitos charutos que degusta reli- giosamente desde criança, não se queixa da miséria instalada, mas nunca assumida. Violão em riste canta os heróis de Sierra Maestra por um punhado de dólares, entregues à socapa, que ajudarão a mitigar as agruras do dia seguinte, a pedido de alguns ianques que não resistem à estética revolucionária da ilha.
“Aprendimos a quererte / Desde la histórica altura / Donde el sol de tu bravura / Le puso un cerco a la muerte…”
E por aí vai… Che, endeusado na ilha por todos sem excepção é, com José Martí, a imagem de marca da revolução cubana.

Em Cuba tudo é aventura, até um simples jantar. Como a iniciativa privada é proibida, ou melhor, era até à pequeníssima revolução imposta por Raul Castro há uns tempos atrás, apenas se pode jantar nos restaurantes oficiais. Mas, por aqui nada é o que parece, por isso, qualquer turista que se preze vai jantar a los paladares, casas particulares que, camufladamente, nos mostram a verdadeira gastronomia caribenha. A aventura de los pala- dares clandestinos (hoje já existem alguns aceites pelo estado), começa bem cedo, após o pequeno almoço, com um passeio por La Habana Vieja e uma ou outra pergunta lançada à socapa por entre informações sobre roteiros oficiais. A economia paralela é tão forte em Cuba, que quase tudo é conseguido por meias palavras: os jantares, os charutos, imagem de marca da ilha, o rum, as pinturas, os livros. Sentimo-nos membros de la résistance na Paris ocupada.
Recolhida a morada e horário, estamos prontos para a aventura nocturna. O nosso paladar, é num beco duma rua da velha Havana, com acesso por um pátio interior dum edifício em mau estado de conservação. Neste momento somos personagens num livro de Pedro Juan Gutiérrez. Hesitantes, batemos numas grades de ferro, que teimam em não abrir-se, enquanto ouvimos a cadência dum bolero que vem do interior. Após alguns minutos que nos parecem uma eternidade, a porta abre-se para um mar de rosa acetinado. A decoração indicia crianças que não existem. Ao invés, um casal gay, mais uma das muitas inexistências oficiais de Cuba, sorriso aberto e acolhedor, convida-nos a entrar. Enquanto vamos degustando umas costelas de porco, na segurança reconfortante daquela casa de bonecas, vamos ouvindo, pela primeira vez, queixas azedas sobre o regime. Histórias de perseguições a opositores, homosexuais, jornalistas, escritores; descrições dum dia-a-dia pautado pela ausência de bens essenciais; o sonho dum país diferente, livre e próspero. Mas, desenganem-se os que pensam que tudo é atribuído à revolução socialista. A culpa pela ausência de produtos, pela fome disfarçada, pela pobreza generalizada vão direitinhos para os EUA e para a política de embargo económico, que dura há mais tempo do que têm de vida estes dois cubanos que nos recebem em sua casa. E isto não se deve a propaganda do governo. Mesmo os opositores ao regime castrista, condenam a manutenção dum embargo que apenas afecta a população e poucos ou nenhuns resultados práticos obteve nos últimos 50 anos. Política esmiuçada, o jantar termina como tudo em Cuba, com música e risos.E lá saímos para o calor húmido da noite cubana ao som de Beny Moré…
“Yo para querer
No necesito una razón
Me sobra mucho,
Pero mucho corazón…”

por João Moreira

COMPARTILHE

SEM COMENTÁRIOS

DEIXE UMA RESPOSTA