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Não, não se trata de mais um texto a fazer apologia às bicicletas. Tampouco se pretende filosofar sobre algo pouco concreto, porque seria banalizar o pensamento e o tempo que já não temos. Minha atenção está focada em um pequenino detalhe da vida de cada um de nós, impactado e impactante ao mesmo tempo: as cidades, seu presente e seu futuro.
Começo sugerindo que existam dois momentos onde a totalidade das cidades no mundo se encontra: o “já” e o “ainda não”. Explico-me. Inúmeras cidades ao redor do planeta já acusam o estado de colapsadas pelo caos do trânsito, ou mesmo pelos resultados ou efeitos da depredação socioambiental (só sabemos da natureza porque existimos e pensamos sobre ela), mas ainda não estão conscientes da urgente e necessária mudança de comportamento e de modo de vida.
Outras, talvez tão próximas de nós, ainda não estão prontas ou aptas para as mudanças, mas já começaram a planejar coletivamente após terem definido os porquês, as maneiras e para que finalidade querem tais mudanças. Sabemos de cidades que já procuraram técnicos e especialistas para tratar de suas patologias urbanas (mais uma vez, sociais), mesmo que ainda não tenham total noção do quanto esta escolha ou decisão trará resultados qualitativos à vida de cada um e de todos os cidadãos, presentes e futuros.
Sim, lá e aqui, hoje e amanhã, mais uma ou menos uma cidade requer para si o título de ‘cidade amigável’, outra daquelas invenções do mercado que se tornou jargão barato, já que o conceito de sustentabilidade foi banalizado pela mídia e pelas bocas desqualificadas e ainda não surgiu nenhum termo tão complexo e tão simples a sua vez, que o suplantasse.
Quando, ao início, tratei as cidades como um “pequenino detalhe da vida de cada um de nós” não quis mediocrizar estes espaços de ser e estar com os outros, apenas me remeti à efemeridade de nossos anos gastos indo e vindo, num causticante e viciante gerúndio, que efetivamente nos faz ir de casa para o trabalho olhando para o ‘chão’ imersos em nossos problemas, tão ‘imensos e vorazes’ (como se fossem apenas nossos) que consomem nossa atenção, até que nos damos conta de que já chegamos ao nosso destino.
Lá irão, uma após a outra, nossas horas de trabalho, para que enfim possamos voltar, invariavelmente, pelo mesmo caminho de sempre, com nosso olhos hipnotizados no ‘nada’, prontos para repetir tudo na manhã seguinte. Um detalhe, esta é tal cidade em que vivo e não a vivo. Um detalhe pequeno é este prédio ou esta praça que sempre esteve diante de mim e que jamais consegui interpretar suas figuras ou detalhes arquitetônicos, porque jamais me atrevi a elevar ou desfocar meu olhar. Outro pequeno detalhe, lembrei de esquecer, do que existe na rua ao lado, e que de mim se escapou durante estes anos todos porque jamais por lá cruzei, porque escolhi invariavelmente seguir pelo mesmo caminho de sempre.
Parte das cidades e das pessoas que nelas vivem reagem às necessárias mudanças com aquele eterno e cinzento Complexo de Gabriela (eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim), e perdem a rara e potencial oportunidade de fazer diferente, de fazer a diferença.
Notamos, nos últimos anos, o quanto a escolha pela bicicleta tem estado presente nos reclames televisivos, nas campanhas de marketing de bancos, cremes dentais, absorventes íntimos, refrigerantes, imobiliárias, destinos turísticos, partidos políticos, universidade, e pasmem, até mesmo em lançamentos de automóveis.
Ironicamente, quase nenhuma destas empresas investe em educação para a ciclomobilidade urbana ou para a ciclocidadania, da mesma forma que não o fazem em adoções de estruturas cicloviárias em consórcio, em parcerias com o poder público, ou quem sabe até mesmo, através da tal ‘responsabilidade social’, outra daquelas falácias que encantam os ouvidos de quem ainda ignora o real sentido da expressão.
Não vou longe, a realidade crua nos tem mostrado que uma boa maioria das empresas do mercado de bicicletas também não aposta ou investe em educação para a ciclomobilidade ou para a ciclocidadania, dizem tão somente que não lhes compete; mal sabem elas o quanto isto democratizaria o acesso à bicicleta, sensibilizaria o poder público, aumentaria o consumo inteligente e responsável, além de ajudar a vida em milhares de cidades e por inúmeros motivos.
Possivelmente, esta avalanche publicitária tenha pegado uma carona nisto que ouso chamar de um dos maiores fenômenos socioculturais dos últimos 400 anos, sob a forma de um movimento pacífico em prol da vida, individual, coletiva e do planeta, direta ou indiretamente, no já e no ainda não.
Talvez, tudo esteja motivado pelo crescente número de pessoas a aderir, por força da necessidade, pela moda, pelo esporte ou pelo diletantismo à causa da bicicleta. Não importa o motivo, isto é um fato social pleno. Porém, assim como ocorreu com os automóveis, a velocidade e o crescimento do volume de indivíduos a fazer uso da bicicleta cotidianamente não se fazem acompanhar por estruturas cicloviárias condizentes, nem mesmo por um modelo de educação mais emancipadora, mais libertadora, quem sabe, ainda que mais responsável.
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Será que lógica deste movimento está realmente fundada na transformação sociocultural promovida pelo uso inteligente e irrestrito da bicicleta? Será que, em parte e em certa medida, não se trata de mais uma tentativa utilitarista-individualista de resolver uma questão estritamente econômica e de falta de acessibilidade, e que caberia, por sua vez, ao Estado, observar? E ainda assim, ou melhor, já não seria hora de cada ciclista sair de sua individualidade e dar sua contribuição ensinando a sua comunidade sobre os benefícios universais da bicicleta, sobre a responsabilidade de quem a utiliza, ou até mesmo, doar parte do seu tempo para organizar, planejar e subsidiar pacíficas, plurais e benéficas formas de exigir todas as condições e melhorias para a ciclomobilidade e a ciclocidadania?
Continuamos a olhar, melancolicamente, as cidades como algo além de nós, a nosso serviço e de acordo com nossos interesses, quando seria oportuno e bem-vindo observar como nos traduzimos nelas, impregnando-as com o nosso melhor e com o que em nós não é tão bom.
Sejamos claros: a cidade é o espelho daquele que se diz cidadão, e independe do Estado para tal. Se a cidade é suja, é porque aquele que ali vive também o é. Se a cidade é pacífica, agradável e acolhedora, é reflexo do que lá vive. Se, por sua vez, é violenta, insidiosa, inacessível e promíscua, não passa de uma projeção dos atores sociais que nela habitam e de suas escolhas. Não podemos aceitar que se entenda a cidade meramente como um somatório de problemas decorrentes de questões demográficas. Mais que tudo, é um ambiente inter-relacional que surge de experiências socioculturais, socioeconômicas e socioambientais, no tempo e no espaço.
Quando nos chegam novidades do mundo da bicicleta pelas redes sociais e, até mesmo, através da boa e velha carta, sempre esperamos ouvir sobre novos lugares onde a bicicleta e seus usuários já não são vistos como seguidores de uma moda sem objetivos. Queremos saber mais sobre as cidades feitas pelas pessoas e para as pessoas, como orienta o excelente arquiteto dinamarquês, mas antes de tudo, cidadão Jan Gehl. Parte da missão deste homem e suas equipes é criar cidades melhores para as pessoas viverem. Isto significaria dizer “cidades melhores para pessoas melhores”?
Quando penso sobre isto algo me remete até minha infância no interior do sul do Brasil, quando indistintamente precisávamos de tão pouco para viver. Não ansiávamos por muito, desde que as pessoas ao nosso redor estivessem felizes. Naquela época, para mim a bicicleta era o presente esperado no Natal, a fim de garantir a folia molequeira cheia de boniteza, a zingrar por todas as ruas empoeiradas pelo esquecimento. Forçando um pouco a memória, coincide o fato de que muitas pessoas também não tinham carro (objeto para poucos), e a bicicleta também era veículo para chegar ao trabalho, escola, encontrar a namorada ou carregar coisas como o botijão de gás, por exemplo. As cidades, por sua vez, também possibilitavam o deslocamento de veículos movidos à tração humana.
Voltamos à realidade atual e projeções futuras. Provavelmente, algumas gestões públicas tratarão de Copenhaguenizar suas cidades, porém este pode não ser o caminho natural para chegar a um resultado semelhante. Digo isto me baseando na reflexão de que um molde triangular jamais dará forma a um objeto redondo, e vice-versa. Ás vezes, modelos aplicados como soluções para determinados problemas não se aplicam em outra parte ou problema diferente. Parte das transformações sonhadas e desejadas, além de requeridas, para as cidades num futuro próximo passam, imediatamente, por escolhas atuais mais humanas e com reflexos mais coletivos por parte de cada um de nós, ainda que isto nos custe certo desconforto momentâneo, adaptação dolorosa ou até mesmo, mudanças de perspectivas pessoais.
Vivemos em um momento bastante delicado da história, porque jamais soubemos tanto sobre tanta coisa, e possivelmente, em mesma escala, jamais tivemos tanta capacidade para transformar nossa realidade comum. A opção pela bicicleta, universalmente, não pode ser tomada com base em modismos, consumismos elitistas, ou até mesmo, por uma postura reacionária e violenta, que usará as mesmas formas de expressão do sistema que repudiamos, o qual lastima, ofende e aniquila a mim, a você e às pessoas que nem mesmo eu ou você conhecemos, no já e no ainda não, no agora e no depois.
Este pequenino detalhe da vida de todos nós está presente na sua rua, no seu quintal, mas também está diante da TV que você não desliga e nos celulares que nos dominam a atenção. Está no estacionamento vertical, na vaga viva, na intermodalidade, nos paraciclos, mas também está naquele sinal vermelho que você cruzou, hoje pela manhã, só porque não vinha ninguém, apenas um ciclista. Está na escolha dos governantes, dos homens do mercado, dos empreendedores, mas também está presente na vida daquele que não tem escolhas. Está presente na bike silenciosa rumo à escola, rumo ao treino, ao cinema ou, tão somente, rumo aos próximos quilômetros. Quem sabe apenas esteja presente.
Enfim, sua cidade, no presente e no futuro está em você, em mim, e acredito concretamente que nós possamos fazer algo de surpreendente.
Afinal, você leu até esta linha, vai discutir este tema com seus pares e na próxima linha eu poderei lhe agradecer por ter feito a diferença durante este tempo que já não temos, juntos.
Vamos estabelecer este diálogo a favor de uma cidade mais humana, de uma cidade feita por pessoas e para pessoas. Já!

Por Therbio Felipe M. Cezar

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