CONTADOR

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Fazia-me confusão que lhe chamassem Contador e só muito tarde percebi o quanto o nome se adequava ao fim a que se destinava. De tudo o que de antigo tem… é surpreendente o tão actual que hoje é.

Desde pequeno que me lembro da minha avó ter aquele móvel na sala de estar. Hoje parece-me mais pequeno do que quando do alto (baixo) dos meus 5 anos me parecia chegar ao teto aquela peça esculpida num entrançado negro-dizem que foi moldado em pau preto…ou será pau santo. O Contador é um móvel “destinado a servir a actividade de contar”. É uma peça de desenho funcional tipicamente português  a que as colónias deram o aspecto e a consequente necessidade. Um contador tem geralmente dezenas de pequenas gavetas que serviam para guardar “dinheiro, valores ou documentos comprovativos de receita e despesa, notas de dívida e outros documentos de contas”.

Já naquela altura a imaginaçao explodia dentro de mim. Sempre imaginei ser um móvel carregado de segredos e nunca fui capaz de abrir uma gaveta que fosse. Nao sei o que lá se guardava. Em bom rigor nunca vi ninguém abrir uma daquelas gavetas.

É curiosa a forma como as exigências de organização contabilística de então originaram um móvel com tão apurada racionalidade. Afinal de contas nesses tempos o papel era a única forma de conferir a titularidade de bens. No limite do papel como bem quantificável, vem a nota, o tal dinheiro. Naquele tempovo tempo do lacre ocre valia, selava, comprometia e assegurava. Hoje os bites tomaram o lugar das folhas de papel soltas amareladas pelo tempo, ou das fotografias manchadas pela luz, ou dos livros encarquilhados pelas estações secas e húmidas. Já pouco é o que temos em papel e mesmo as “notas” estão ameaçadas pelo dinheiro electrónico a que chamam Bitcoin, mas o mais curioso é que se manteve o racional do principio organizativo do Contador das mil gavetas.

Hoje cada gaveta passou a ser uma pasta amarela num disco rígido dividido em gavetas/partições de um computador que ele próprio de tão pequeno cabe numa gaveta. Mudou o tempo, manteve-se a razão.

Geneticamente ou socialmente, fomos “educados” a conviver com espaços compartimentados. É aí que o nosso cérebro encontra ordem, é dessa forma que o nosso racional consegue etiquetar e armazenar conhecimento, experiência e lógica. Lidamos mal com o espaço amplo. Acho que sempre lidámos. Ao amplo chamamos caos, aos compartimentos chamamos ordem, ainda que por vezes criemos tantos compartimentos que acabamos por cair na compartimentação infinitesimal (cada compartimento guarda apenas uma coisa) que por sua vez volta a cair no caos pseudo-compartimentado. Talvez o espaço amplo nos retire os pontos referenciais que o nosso cérebro precisa para saber onde está!

Quem não tem no seu PC a famosa pasta chamada “outros”?

Ainda que o efeito final se mantenha o mesmo, a elevação de pontos fronteira é comum a todas as culturas. Em Portugal um compartimento de uma casa divide-se de outro por tijolo de oito…no Japão usa-se um biombo de papel. No final…fica a divisão…o compartimento, a gaveta.

O instinto animal revela-se por defeito possessivo. A necessidade de posse de área de um leão não é diferente da necessidade humana de delimitar o seu espaço seja ele de zona de conforto ou simplesmente zona de segurança. O mundo ainda não está preparado para fusões territoriais, culturais nem religiosas. A diferenciação individualizada garantida pela genética e pelo carácter de unicidade de cada um de nós leva-nos ao completo paradoxo de nós próprios: Sendo individuais temos a necessidade de nos agruparmos em grupos. No fundo não nos agrupamos pelo que não temos de diferente mas pelo critério das menores diferenças. Já que todos somos diferentes como indivíduos que somos por imposição genética, cada grupo é para nós,no fundo, o menos diferente dos grupos. É isso que nos permite aceitar que outros entrem na nossa gaveta e na gaveta do grupo.

Fica sempre um ponto fronteira. Existe sempre esse terrível ponto fronteira que define o que está do lado de cá e do lado de lá. A civilização não está preparado para assumir uma cultura infinita, uma cor infinita, uma raça infinita e uma religião infinita. Quando digo infinito quero dizer indiferenciável, quero dizer na plena aceitação da diferença como igual.

Não há dúvidas de que o ser humano caminha na direcção da fusão, mas a perfeita fusão só acontece na perfeita paz e na perfeita aceitação do conceito infinito que torna a diferença uma extensão do igual. Muito temos que evoluir até chegar lá…mas se os continentes se fragmentaram da Pangeia à 400milhões de anos, é impensável que possamos querer ter todas as fronteiras eliminadas numa única geração, ainda que a velocidade do mundo seja cada vez maior. No choque cultural existirão avanços e recuos numa espécie de movimento harmónico acelerado em que os avanços serão superiores aos recuos mas em que os recuos são inevitáveis como forma de captação da energia necessária ao próximo movimento.

Vamos virar o ano mais separados do que quando o iniciámos mas estamos cada vez mais perto do tal mundo de conceitos infinitos. A regressão antecede a aceleração e o ponto final será mais acima do que o ponto inicial. Chamam-lhe normalmente Esperança.

Esperamos que no futuro haja mais paz e mais tolerância à igualidade diferente. Provavelmente não será já em 2016…mas não nos cabe a nós estar por nós mas pelos que virão.

Cabe-nos ser menos egoístas sem deixarmos de ser justos, cabe-nos construir mais valores que incorporem os valores de outros, e cabe-nos respeitar aquela diferença ao ponto que a mesma caiba na nossa gaveta e não na pasta a que chamamos de “outros” como podíamos chamar de “lixo” ou de “tudo o que não sei onde arrumar”. Se tudo couber na nossa gaveta, o Contador passa a ter uma única gaveta.

Se colocássemos uma fila de 20 indivíduos em linha cada um com uma pele mais escura do que o anterior (ou vice versa), não iríamos porventura conseguir identificar onde começa o “branco” ou o “preto”. Olhar a cor sem olhar a cultura é o mesmo que olhar para uma folha de papel branca num quarto sem luz e tentar adivinhar a sua cor.

Um dia não necessitaremos do móvel Contador como o que a minha avó sempre teve na sala de estar, porque não precisaremos de ter uma etiqueta para atribuir o valor das coisas…o valor das pessoas…o valor do mundo. Não precisaremos mais de contar o que temos, mas sim de contar com todos.

Bernardo Mota Veiga

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