Crónica por Susana Borges

Crónica por Susana Borges

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O meu nome é Susana Borges, 36 anos, ativista de direitos humanos e em busca desse mistério de sermos capazes de “amar incondicionalmente” e da afirmação dos direitos de todos através da não-violência e da luta pacífica. Principais referências, desde sempre, encontradas em: Gandhi, Martin Luther King, Madre Teresa de Calcutá, Nelson Mandela, Aung San Suu Kyi ou Dalai Lama. Em causa estão, invariavelmente, a liberdade e a igualdade de todos no Mundo!

Se fosse Florbela Espanca, diria: “Eu sou a que no mundo anda perdida, eu sou a que na vida não tem norte, sou irmã do sonho…”. A minha proposta é levarvos nesse sonho, nesse mundo idílico em que acredito. Vou levar-vos nas minhas viagens, enquanto me quiserem acompanhar. Faço missões humanitárias e viagens que vão muito além da tónica turística. Não esperem de mim dicas de viagem e muito menos de hotéis de luxo ou de spots turísticos! Esse não é o meu propósito, nem o da crónica que vos vou escrever, enquanto nos fizer sentido.

Alguém anónimo terá dito que: “Travel is the only thing you buy that makes you richer”. Não podia estar mais de acordo! As minhas viagens têm muito de exploratório, de descoberta, bem ao estilo National Geographic, a que assistia em miúda, fascinada com o que existe neste Mundo que nos acolhe! Cresci a admirar todos os seres e, mais tarde, aprendi a respeitar e aceitar todos os humanos! A ordem pode parecer estranha, mas todos sabemos que, muitas vezes, é mais fácil admirar um lagarto do que amar um humano! E esse é o grande desafio da descoberta do mundo e dos humanos que o habitam. São viagens físicas, sim, mas que me vêm despertar outras viagens, as interiores, em busca do sentido da vida, da reflexão sobre as desigualdades, sobre a incompreensão e separações entre humanos. O que vos proponho é a descoberta de lugares, pessoas, culturas, religiões, cores, cheiros e sabores, cada um com a sua magia e a sua verdade, sem que se anulem ou se sobreponham. No final, acabamos por descobrir
que, algures no mundo, habitam humanos como nós, em busca dessa coisa que é a felicidade! Muitas vezes, apenas um conceito ou construção social em torno de coisas que nada têm a ver com a felicidade de que todos precisamos!

Por agora, transporto-vos até África, mais concretamente, até ao São Tomé e Príncipe de 2011, a minha primeira missão e o meu primeiro amor! Este texto foi escrito em 2012, ainda em “ressaca” da paixão que São Tomé me deixou, após 1 ano de vida naquele país. Foi escrito para uma outra revista e talvez hoje escrevesse de outra forma, destacasse outros aspetos, mas pareceu- me uma boa maneira de “dar à luz” esta viagem de crónicas, que vamos fazer juntos, deixando-vos com a inocência das palavras, típica do primeiro amor, embora sobre uma jornada que, mal sabia, estava apenas a começar! Mas como todas as caminhadas se fazem com o primeiro passo e como o primeiro passo nasce
da vontade, da garra que há dentro de nós…venham daí conhecer as Ilhas mágicas do “Léve-Léve” e despertar para outras realidades de “Humanos Como Nós…Algures no Mundo!”

São Tomé – A magia da linha do equador Onde nos perdemos no e do tempo…

São Tomé… Bastou-me chegar ao aeroporto, surpreendentemente designado de “Internacional”, para perceber o quanto aquela terra e aquelas “gentes” me iriam encantar pela sua genuinidade e carisma… Desço as escadas do avião e sinto-me “abraçada” por uma humidade que se entranha em mim, que me envolve desde o primeiro momento, que “primeiro se estranha, mas depois se entranha”. Quem não gosta, não vai gostar nunca, mas quem chega disponível para explorar e dar-se com abertura e simplicidade, ficará apaixonado e rendido para sempre.

Venho para ficar um ano, com o intuito de trabalhar para o desenvolvimento local em algumas das comunidades mais isoladas e pobres da Ilha de São Tomé. Apesar de quase 48 horas sem descanso, o espírito de descoberta e o encanto por África não me deixam dormir. Caminho sem direção, falo com todos, porque todos falam comigo. O meu nome é “branca, branca… dá doce”, por vezes, “branca, vou casar com você”. Também sou “mulata”, “dona”, “dama” ou “tia” para os mais pequenos. Rendo-me à alegria das ruas, à música por todo lado, aos velhos táxis amarelos que buzinam como loucos, à mistura de cheiros que nos baralha, entre os bons e os maus, paradoxalmente, gosto da confusão, da desarrumação, da sujidade, do desenrasca do santomense em cada canto; do peixe fresco coberto de moscas, lado a lado com os panos africanos, dos motoqueiros que passam e param para ganhar uma corrida, das “brancas e brancos” que, como eu, deambulam pela cidade, cobertos de suor, a arrastarem-se em passo lento, já perdidos no tempo, onde o tempo deixou já de ter o mesmo significado e, sobretudo, onde deixa de exercer tanta pressão sobre nós.

Terra quente, húmida, de tonalidades de verde que desconhecia existirem, terra fértil, de recantos virgens. Terra de cheiros, sabores, de musicalidade, de potencialidades inexploradas. Tudo germina e cresce em São Tomé, com a água das chuvas, o calor e as terras virgens. Terra do safú, da jaca, do mangustão, da fruta-pão que se encontra em cada jardim, no mato, na beira da estrada, dos caroceiros nas praias paradisíacas, repletas de coqueiros, onde as crianças sobem munidas do machim, brinquedo e instrumento de sobrevivência que manuseiam desde tenra idade com mestria, para derrubar e rachar os cocos, a jaca, os cachos de banana, o cacau. Da terra e do mar, emerge o alimento diário das famílias. A fome é uma realidade que não se compreende, nem se pode aceitar por aqui.

Percebo, desde o primeiro momento, que as crianças são a grande riqueza e o potencial deste pequeno país. Estão por todo o lado, brincam, dançam, lambuzam-se a chupar caroços de caja manga, metem-se com os “brancos”, pedem coisas, seja o que for, porque os brancos habituaram-nas a pedir, especialmente doces, correm atrás de nós e, sobretudo, sorriem e riem abertamente, semeiam alegria no coração de todos que por ali passam. Fazem-nos perceber que, afinal, é possível ser feliz com tão pouco, apesar das roupas rotas, dos chinelos gastos ou dos pés descalços. Têm tanto para nos ensinar, fazem-nos sentir que a vida é tão simples no “léve-léve” santomense. A cooperação para o desenvolvimento não é um conceito ou uma prática unidireccional e sempre que levamos a ajuda a outros povos e culturas, recebemos e trazemos muitos ensinamentos dessa experiência.

São Tomé apresenta-se-me como um misto de culturas, de referências e de identidades, que se revelam pelo Tchiloli (folclore tradicional santomense, com um toque teatral), pelas danças tribais, o bulawé e tantos outros encantos terminados em “ê”.

Terra dos já denominados “capitães de areia”, crianças que crescem com o apoio umas das outras, com rituais muito peculiares de sobrevivência e de afirmação. Meninos que se juntam para arriscar a sua sorte no mato, enfrentando todos os perigos que aí se escondem (caso da cobra preta), para assegurar o alimento diário que lhes garante a sobrevivência. O alimento das crianças é sazonal. Quando há jaca, praticamente, só comem a jaca que roubam das árvores; na época da manga, aumentam as parasitoses intestinais, porque não tiram a casca, nem lavam; na época de chupar o cacau, assaltam as plantações das roças. Não são meninos da rua, porque têm casa, família, mas são meninos da vida, que sabem o que é lutar pela vida desde que começam a dar os primeiros passos.

A mortalidade infantil em São Tomé atinge, sobretudo, crianças em idade pré-escolar (0-5 anos), porque dependem ainda dos cuidados maternos. O problema é uma espécie de círculo vicioso: os homens são poligâmicos e orgulham-se de ter filhos com várias mulheres, mesmo que não tenham condições de contribuir para o sustento dos filhos; as mulheres, à imagem de “Medeia”, para se vingarem dos homens abandonam os filhos um bocadinho à sua sorte e reúnem-se para beber vinho da palma e esquecer a revolta face aos maridos que desaparecem durante semanas ou meses para irem ter com as outras mulheres/ famílias ou com as “boquitas” (espécie de amantes); as crianças veem-se obrigadas, desde muito cedo, a lutar pela sobrevivência e, quando chegam à adolescência, reproduzem o padrão que aprenderam. O homem tem direito a várias mulheres e a procriar com todas, a mulher revolta-se e bebe e assim sucessivamente. São Tomé tem ainda um grande passo a dar no que respeita à igualdade de género.

Terra dos “banhos de rio”, da beleza paisagística que ofusca e deslumbra, da sensualidade das danças com corpos suados e colados, dos cheiros a verde, mar, frutas e flores, da “dawa” fresca, do búzio do mato e do mar, do peixe com fruta, banana ou mandioca, da cacharamba e do calulu. São Tomé encerra, em si, encantos e mistérios paradoxais. Uma terra onde não se compreende que exista ainda tanta fome e desnutrição, onde a corrupção, transversal a grande parte dos países do continente africano, oferece resistência face à mudança e ao desenvolvimento socioeconómico que seria de esperar, num país que recebe tanta ajuda externa e em que cerca de 93% do orçamento de Estado é assegurado pela ajuda externa.

São Tomé parece ter parado no tempo. Encontramos ainda as roças da época colonial, com as casas senhoriais e as sanzalas ocupadas pelas comunidades, tudo destruído, mas surpreendentemente belo. O tempo não parece ter passado por ali, tem uma dimensão e um valor que nós, ocidentais, industrializados, desconhecemos. Dizem-nos o tempo todo “branca, léve-léve…” e o mais surpreendente é que, passado algum tempo, que não conseguimos quantificar, prever ou controlar, apercebemo-nos que fomos “encantados” pela magia da latitude zero. A vida deixa de ser o passado que nos prendia ou o futuro que nos angustiava, o tempo é agora, por hoje “desenrasco” o que comer, por hoje sou feliz a dançar um “bulawé” entre amigos, tudo se resolve, tudo se desenrasca, este é o maior ensinamento de São Tomé.

Xaué, anté mungu ê! *
* Adeus, até amanhã!
(Prepara a mochila para a próxima viagem…)

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