Skip, uma lição de vida

Skip, uma lição de vida

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Há pequenas coisas que mudam grandemente a nossa vida, não só a forma como vemos os outros, como encaramos as dificuldades mas, também, como olhamos para nós próprios.

Estávamos no carnaval de 2014, era dia de ir fazer o pagamento mensal do pão… sim, viver na aldeia tem destas coisas, pão pendurado na porta pela madrugada e fazer o pagamento quando temos disponibilidade.
Moramos em Silgueiros e a padaria que nos fornece o pão é de Lajeosa do Dão, são poucos quilómetros entre as duas povoações mas, Lajeosa fica no sentido oposto ao que fazemos diariamente para ir para o emprego, por esse motivo é muito raro passar pelas ruas estreitas da Lajeosa.
Nesse dia, fui com o meu marido pela manhã fazer o pagamento do pão. Ao passar por uma rua estreita, de sentido único, com casas coladas reparo num pobre bichinho debaixo de um beirado de uma dessas casas de três andares… O pobrezinho estava molhado, imóvel, sujo, cheio de rastas no pêlo e com o ar mais desgraçado que jamais vira. Foi uma imagem tão triste que nem consegui interromper o discurso animado do meu marido… Fiquei tão chocada que limitei-me a manter o silêncio e tentei apagar aquela imagem da minha memória…
Estava tudo bem! Havia ali tantas casas, tantas pessoas, haveria alguém, certamente, a dar conta dele. Voltámos para casa e o dia continuou a decorrer como estava previsto. Os meus sobrinhos foram lá para casa depois do almoço e aproximou-se a hora do lanche. O pão fresco que havia lá em casa não era suficiente para satisfazer três rapazotes adolescentes, ou quase, que não negam pelo menos duas sandes a meio da tarde. Só havia uma coisa a fazer, ir comprar mais pão.
Saí com a minha cunhada e fomos à padaria mais próxima. Como era dia de carnaval e a maioria das pessoas não tinha ido trabalhar, quando chegou a nossa vez de ser atendidas já não havia pão, teríamos que esperar cerca de vinte minutos por nova fornada. Não esperámos e fomos a outra padaria, voltei à Lajeosa… Voltei a passar na mesma rua estreita… Qual é o meu espanto quando me deparo de novo com o triste cão! No mesmo sítio, com o mesmo ar desgraçado que me comoveu de manhã. Foi tão estranho, comentei com a minha cunhada que era impossível que ninguém visse o sofrimento e o abandono a que aquele pobrezinho estava sujeito!
O resto do dia foi estranho, mesmo com a casa cheia de gente não me saia da cabeça aquela imagem do pobrezinho. O pior foi quando chegou a hora de ir para a cama. Não consegui dormir, tinha um aperto no peito que me impedia de relaxar. No dia seguinte, fui trabalhar, como o ”nó” não desaparecia e precisava de desabafar: fui descrever a triste imagem a alguém que eu sabia que me iria entender. Fui falar com a Susana. Ela é uma acérrima defensora dos animais e ficou tão comovida quanto eu. Para me tranquilizar ela disse só podíamos fazer uma coisa, ir apanhá-lo e tratar dele.
Nesse mesmo dia, depois do trabalho, alterando as nossas rotinas diárias, lá fomos nós. Acompanhou-nos outra grande senhora, a Carina, também ela não poupa esforços para ajudar e salvar cães e gatos abandonados.
Percorremos as ruas esteritas à volta do local onde eu o tinha visto mas nem sinal do pobre bichinho. Subitamente a rua ficou cheia de gente curiosa para saber o que é nós ali estaríamos a fazer. Quando perguntámos se alguém sabia onde o poderíamos encontrar, aquela gente começou a opinar sobre o estado do cão, o destino que devia ter e tantos outros disparates que nem vale a pena referir. Quando descíamos de novo a rua, a Susana descobre o bichinho deitado, apático, alheio a toda aquela agitação, debaixo de uma carrinha de caixa aberta ali estacionada.
Aí as coisas ficaram mais complicadas. Tínhamos que o apanhar, tirá-lo debaixo da carrinha e metê-lo dentro do carro… Surge então uma outra senhora que, tal com a maioria daquela gente, achava que o estávamos a levar para o abater! Essa senhora, não assumindo que era a dona do cão, era a pessoa que o alimentava. Não foi fácil convencê-la das nossas intenções. Finalmente, a D. Carla, assim se chama a senhora, lá entendeu e ajudou-nos a tirar o Skip e metê-lo no carro da Carina. Deixámos a promessa de dar notícias. A D. Carla, aparentemente, será a pessoa com mais dificuldades daquela rua, no entanto, é a única que tem coração e toma conta dos animais que por ali aparecem…
O nome “Skip” surgiu quando ele entrou dentro do carro… Coitadinho, ele tinha um cheiro insuportável! Ele precisava urgentemente de banho!
Voltei para casa enquanto a Susana e a Carina levavam o Skip para a clínica. Tal como já suspeitávamos, entre outros problemas menores o cãozinho tinha “leishmaniose”…
“Determinação” é a palavra que melhor descreve o que veio a seguir. Apesar da Tutinatura ter sido fantástica, ter oferecido o internamento, o tratamento do Skip foi muito dispendioso. Conseguimos recolher alguns donativos entre familiares e amigos mas, as contas foram muito pesadas! Não consigo perceber porque é que o estado, que gasta tanto dinheiro mal gasto, não tem nenhum meio para que se possa ajudar os animais sem ser levá-los para os canis e a maior parte das vezes dar-lhe o destino que nos custa a aceitar!
Chegou a hora de ir buscar o Skip à clinica, onde é que ele ia ficar? A solução acabou por ser levá-lo para casa de um primo meu que tem um espaço vedado onde outrora também tinha tido um cão. Apesar de muito debilitado, o Skip teria tendência para fugir e isso era deitar tudo a perder. Assim foi nos primeiros tempos, levantar mais cedo para lhe dar os medicamentos antes de ir trabalhar, voltar à noite para o voltar a tratar. Esta fase não foi fácil, o pobre animal quase não tinha pêlo, tinha a pele cheia de feridas, não fechava os olhos… Para completar o cenário, chovia quase todos os dias, ele com o frio não saia da casota e era uma luta para o tratar diariamente. Confesso que houve dias que fiquei desesperada! Geralmente à noite tinha ajuda para o tratar, o meu marido ou o meu filho ajudavam, mas de manhã ia sempre sozinha cuidar dele.
Quando ele já estava em melhores condições mudámo-lo para casa dos meus pais que estava desabitada. Aí as coisas começaram a ficar mais fáceis, era mais perto de casa, a caminho do emprego e o tempo também melhorou significativamente, a chuva e o frio deram tréguas. Além disso o espaço que o Skip tinha à sua disposição era muito maior e ele podia começar a voltar a ser um verdadeiro cão.
Estava tudo a correr bem, o Skip até já tinha recomeçado a ladrar, recuperava a olhos vistos, recebo uma mensagem de que o meu pai estava a chegar a casa com os seus dois cães nesse dia… Foi um dia de aflição. Não podíamos deixar o cão ali. O macho do meu pai não é o cão mais amistoso que conheço. Era necessário arranjar outro local para o Skip. Para casa ainda não podia ir, não sabíamos como é que os meus dois “meninos” o iam aceitar, e ele ainda estava demasiado debilitado para enfrentar um outro macho… Mais uma vez a Susana encontrou a solução, o Skip iria para a GRUMAPA, em Mangualde. O cãozinho ficou lá durante duas semanas. Não foi fácil deixá-lo lá, nessa altura ele já nos tinha conquistado de uma forma incrível! Recordo-me de ouvir o meu marido dizer-lhe à saída “Não te preocupes, eu venho buscar-te…” Foram quinze dias de preocupação, embora soubéssemos que as pessoas que trabalham naquela associação são fantásticas, a verdade é que tinham mais de uma centena de cães para cuidar diariamente! A estadia do meu pai prolongou-se e chegou o dia de ir buscar o Skip. Foi no dia um de maio, a meio da tarde lá fomos. O Skip tinha que ir para nossa casa… E os meus “meninos” como é que o iam receber? A reação foi a melhor possível pela parte do Budy, a Nocas é que não gostava do cheiro dele e recusava-se a partilhar o mesmo espaço com o pobre que ainda não tinha tomado banho! A Nocas passou a dormir na cozinha e quando o Skip se deitava na cama dela era necessário lavar tudo! Na primeira noite o meu marido assumiu a responsabilidade de deixar o Skip dormir dentro de casa tal como os nossos dois. No dia seguinte, encontramos tudo limpo, nem um cocó, nem um xixi… Ele sabia como comportar-se dentro de casa.
Após mais uma visita ao veterinário houve licença para banho. A pele já estava praticamente sarada e o pelo começava a ser abundante. Após o banho o Skip ganhou uma nova amiga, a Nocas passou a brincar com ele e a partilhar, inclusivamente, a sua cama. A partir daí tudo correu como é de esperar numa casa com três cães. O Skip foi ganhando confiança, quando chegou lá a casa nem sequer entrava na cozinha, ao fim de algumas semanas já estava a disputar o sofá da sala com a Nocas… É certo que o meu cão teve alguns ataques de ciúmes, a Nocas nem sempre vinha à procura do mimo da noite, mas o Skip não interferiu demasiado nas nossas relações. Foi extremamente gratificante vê-lo voltar a ser um cão!
Eu sempre disse que ele estava lá em casa de passagem, eramos apenas uma família de acolhimento e não adotiva. Na realidade eu já não pensava isso. O Skip conquistou-nos a todos, doce, meigo, com sentido de oportunidade para entrar nos nossos corações. Inicialmente, tentei não me afeiçoar muito a ele, pois continuo a achar que dois é o número ideal de cães, costumo brincar com isso dizendo que só temos duas mãos e não dá para fazer festas simultaneamente a mais de dois. Na verdade o Skip já era parte da família.
Não esquecemos a D. Carla, houve um dia, com muito receio, é certo, que juntamente com a Susana o levámos à Lajeosa. A gratidão que ele demonstrou por ela e pelo filho foi comovente! Ele não os tinha esquecido e foi emocionante vê-lo com eles. Eles ficaram felizes por ver como ele estava e reconheceram que não tinham condições para ficar com ele.
Quando já todos pensávamos que ele já não ia embora surgiu outra família que o quis… Foi num sábado do início de outubro, a minha mãe ligou a meio da tarde e perguntou-me se ainda estávamos dispostos a deixar ir o Skip. Fiquei “sem chão”. Antes de lhe responder perguntei se a pessoa que o queria sabia dos problemas dele e que ele tinha que ser medicado até ao resto da vida. A minha mãe explicou-me que a amiga que o queria estava a par de tudo e disposta a ficar com ele mesmo ele sendo doente. Trata-se de uma senhora amiga dela, que ela conhece bem e na qual deposita a maior confiança. Depois de me inteirar das condições em que ele iria ficar acabei por dizer que sim. Nesse mesmo dia a Geny foi lá a casa para conhecer o Skip. Para ser franca achei que quando lhe explicasse todos os cuidados que ele necessita ela iria ficar desmotivada mas não foi assim! Tanto ela como o filho ficaram encantados com aquela “bolinha de pelo” meiga e adorável. O pior foi quando ela perguntou se o podia levar logo nesse dia. Após perguntar ao meu marido o que é que íamos fazer acabámos por deixá-lo ir…
Era sábado, eles queriam passar o domingo com ele, ver como é que ele se adaptava à casa, e por aí fora… Estes argumentos convenceram-nos. Foi uma decisão difícil, no entanto tenho a certeza que se tivéssemos recusado e se pensássemos mais acabaríamos por já não o deixar ir.
Ele foi nesse dia, mas lá em casa não retiramos a cama dele do sítio que ocupava desde maio. Pensamos que ele não se iria adaptar, que lhes daria problemas por ir viver num apartamento, que faria asneiras e eles o devolveriam em poucos dias.
Nessa noite, quando chegou a hora de deitar os cães o meu filho fez-me sentir ainda pior do já estava a sentir. “Porque é que o deixaste ir?” Acabei por me justificar com a frase que tinha repetido dezenas de vezes na minha cabeça, “É o melhor para ele, ele merece uma família só para ele.”
Esperámos toda a semana por um telefonema a perguntar se o podiam devolver, o telefonema não chegou. A minha mãe foi dando indicações sobre como estavam a correr as coisas e no final da semana resolvemos ligar. Estava tudo bem, já estava ambientado e o único “disparate” que ele fazia era aproveitar a casa vazia para se deitar no sofá!
O Skip entretanto já voltou lá a casa, os donos foram viajar e ele ficou connosco seis dias. Temos esse acordo, sempre que eles precisem e desde que haja disponibilidade ele “volta a casa”.
O Skip tem uma capacidade de adaptação que ninguém consegue imaginar. Ele é muito especial. Eu adoro cães, fui criada rodeada de cães e já tive vários muito especiais. O Skip foi uma aventura para nós em muitos aspectos e acima de tudo deu-nos lições de vida. Nunca se impôs, foi ocupando o espaço que lhe era concedido e conquistou-nos a todos de uma forma tão subtil que quando demos conta ele já tinha um lugar igual aos meus outros dois cães dentro dos nossos corações.
Foi uma grande aventura tirar o Skip da rua e devolver-lhe a dignidade que qualquer cão merece. Nem sempre foi fácil, mas ele é tão especial que tudo valeu a pena! Uma coisa é certa, ele será sempre o nosso Skip.
Não posso terminar sem agradecer a todas as pessoas que de forma direta ou indireta ajudaram e contribuíram para a recuperação do “nosso” Skip. Em nome da minha família e do Skip, obrigado.

por Ana Paula Gonçalves

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